victor’s review published on Letterboxd:
o conformismo de um trabalho marginalizado, marcado pela ausência de perspectivas de melhoria, expõe de forma crua a dureza de uma verdade que aprisiona. Para muitas profissionais do sexo, essa dinâmica torna-se um reflexo de sobrevivência já que oferecem aquilo que lhes garante o sustento, adaptando-se a um ciclo que parece inescapável. Não há espaço para questionar essa estrutura ou sonhar com algo além. A aceitação da própria condição surge quase como uma defesa psicológica, uma forma de ar a cobrança incessante de uma vida que não concede nem mesmo fragmentos de felicidade proporcional ao que se merece. Ani encapsula essa condição com perfeição. Ela é uma mulher de espírito moldado pela volatilidade das circunstâncias, disposta a atender às demandas que sua profissão exige, mas sempre dentro dos limites de um axioma tácito que rege sua existência pois a vida que ela conhece é sua única realidade possível, não há espaço para romantismos ou ilusões. Contudo, quando o jovem russo entra em sua vida, atraído por sua presença e pela possibilidade de algo mais profundo, ela, inicialmente, o percebe apenas como mais um cliente. A relação se apresenta, a princípio, como uma extensão de seu trabalho rotineiro, algo que ela sabe conduzir com destreza, mesmo dentro de sua precariedade emocional, porém, a partir do momento em que ela percebe algo que desvia da norma, avistado num afeto genuíno e desproporcional ao que ela está habituada, a sua realidade começa a desmanchar. O jovem russo não apenas se aproxima dela como um cliente qualquer, mas se oferece como um símbolo de algo diferente, algo que desafia a lógica de seu cotidiano e, para ela, aceitar essa possibilidade é um desafio, pois envolve um embate interno entre a descrença que permeia sua vida e a esperança de que, talvez, um futuro melhor seja possível.
o conto de fadas de Sean Baker que está mais para um pesadelo que ninguém quer, termina sendo afetado por sua habilidade em revelar as dinâmicas invisíveis de setores à margem da sociedade e utiliza essa relação para moldar o clímax que desafia o espectador a enxergar beleza em lugares improváveis. Embora Baker frequentemente se aproxime do realismo cru em seus retratos coletivos, aqui ele opta por um tom mais etéreo, quase fantasioso, ao explorar os momentos de desconexão de Anora com sua realidade habitual, onde o acolhimento não é apenas sinônimo de proteção mas também vislumbre de um futuro que ela nunca imaginou para si, a diegese de não embarcar em um relacionamento mas sim sobre o conflito entre a temeridade e a chance de sonhar, um paradoxo emocional de aceitar sem saber se pode se permitir, mas recusar e sentir a dor, quase como negar a si mesma uma chance de experimentar algo transformador. O afeto, para ela, não é apenas carinho, é uma ruptura quase milagrosa com o ciclo opressor de uma vida onde os sentimentos são frequentemente suprimidos em nome da sobrevivência, uma dualidade estética que constrói um ambiente visual e narrativo ao equilibrar o realismo áspero de uma vida difícil com os elementos suaves e esperançosos de um romance improvável. O ambiente que cerca Anora continua sendo duro, acerbado e indiferente, mas o elo que ela estabelece é iluminado por um calor inesperado, um vislumbre do que poderia ser mas não é de fato, um confronto entre o medo de acreditar e a necessidade de se agarrar a algo que pareça maior do que a monotonia esmagadora da vida cotidiana. A desilusão se torna um aparato despertador, um golpe sutil e devastador que força Ani a encarar verdades que até então se recusava a itir. Ela havia se agarrado a um ideal que, ao longo do tempo, se revelou ilusório, e agora era obrigada a reconhecer que sempre esteve aquém das expectativas que nutria sobre si mesma e sobre o mundo ao seu redor. Junto a ela, porém, estava Igor, deixado de escanteio, o que não era novidade para ele, pois era só mais um reflexo cruel e nítido de sua própria condição. Assim como Ani, ele era mais uma peça danificada na engrenagem implacável de um sistema que oprime e consome. Igor não era apenas uma vítima das circunstâncias que o moldaram, mas também um produto do mesmo sistema que os unia em sua desgraça compartilhada. Apesar disso, havia algo de profundamente humano na relação que começou a se formar entre eles. A aproximação que antes parecia impossível, bloqueada por muros invisíveis de desconfiança e resignação, se transformou em uma conexão íntima e inegável. O que antes era distância tornou-se um espaço preenchido por cumplicidade e entendimento mútuo. No momento em que o primeiro gesto genuíno de afeto foi dado, algo extraordinário aconteceu pois as barreiras erguidas pela desumanização e pela objetificação, perpetuadas pela elite que os explorava, começaram a desmoronar desde o primeiro toque. Foi como se toda a jornada de sofrimento e alienação pelas mãos dos poderosos tivesse perdido sua hegemonia, se tornando apenas uma lembrança amarga, mas não mais capaz de definir quem eles eram ou o que poderiam se tornar a partir dali. Naquele instante, a história de Ani e Igor deixou de ser apenas sobre dor e opressão, tornou-se também um conto de resistência e de esperança, um testemunho do poder transformador da conexão humana mesmo nos cenários mais adversos.
à vista dessa capacidade e poder narrativo, a história de Anora é uma alegoria sobre a coragem de se permitir sonhar, mesmo quando as circunstâncias dizem o contrário. Sean Baker, com sua narrativa profundamente humanista, convida a refletir sobre como o afeto e a esperança podem desafiar até mesmo as realidades mais opressivas. Não se trata apenas de um romance ou de um sentimento entre duas pessoas, mas de um convite à resistência emocional. Ani representa todas as pessoas que, contra todas as probabilidades, encontram força para acreditar que merecem algo mais, e que, às vezes sonhar, mesmo com hesitação, pode ser o ato mais revolucionário e corajoso a se fazer.